Todas as pessoas do mundo são — ou ao menos podem ser — incríveis. Cada história é única e cabe aos contadores, sejam eles escritores, artistas, músicos ou jornalistas, a missão de tentar contá-las.
Falar de outras artes seria abstração. O jornalismo por certo é falho. Tem limites, algo que histórias pessoais, por definição, nunca terão.
Ruediger Ran fez questão de não deixar a velhice ser o ocaso da própria existência. É um homem simples, que vive sob a fundação do que acredita — exercícios físicos, isolamento social, muita lentilha. E voos.
Coube à generosidade do alemão de 81 anos — que há 10 faz dos mares e céus da praia da Taíba, no Ceará, seu maior prazer —, ofertar oportunidade de um jornalista de 27 anos ouvir como sobreviver a um corpo que rejeita a vivacidade de uma mente.
Essa é a história do encontro entre Ruediger Ran, que por quatro meses por ano foge do frio da Alemanha rumo ao litoral cearense, com Lucas Mota, repórter que confessa sonhar ter a resistência do veterano aventureiro.
Foi uma tarde de conversa. Pouco tempo para compreender décadas. Pouco tempo para compreender dias.
O ALEMÃO DE 81 ANOS QUE MANTÉM ROTINA DE KITESURFE NO CEARÁ HÁ UMA DÉCADA
Ruediger Ran encara a depressão, supera o peso da idade e faz do esporte sua casa no Ceará. Há dez anos, ele viaja à Praia da Taíba para encarar o mar do alto na sua pipa.
Por Lucas Mota
Aos 71 anos, Ruidiger Ran descobriu o kitesurfe e redescobriu-se jovem. Aos 81 anos, ele segue renovando sua juventude nos litorais cearenses a cada ano. Em plena terceira idade, o alemão encontrou um novo sentido para a vida. Era 2009. De férias no Ceará, ele resolveu arriscar no esporte que havia conhecido no litoral de Cabo Verde. Foi na Praia da Taíba, em São Gonçalo do Amarante — cidade a 62,5km de Fortaleza — que o veterano aventureiro achou a combinação perfeita de condições e espaço para desfrutar aquilo que se tornaria seu universo particular e introspectivo.
A mescla do kitesurfe com o litoral oeste cearense — meca do esporte sobre ondas —, mudou a vida do alemão de Ravensburg. O deslize nas águas do mar da Taíba em cima da prancha, em conexão com a pipa alçada ao céu, tirou o idoso da escuridão da depressão.
“Minha vida são 12 meses. Em 8 meses, eu penso: ‘Ah, no próximo ano tem o kite e eu posso fazer isso, posso fazer aquilo”, diz, num inglês puxado no sotaque alemão.
Coube ao Ceará oferecer a paz interior que Ruediger buscava. Em 2009, a Taíba foi adotada como o porto seguro para a prática do kite — o combustível que mantém corpo e mente relativamente jovem, mesmo aos 81. Desde então, a viagem para São Gonçalo do Amarante entrou no calendário anual. Troca o sul da Alemanha por quatro meses pela vastidão das areias da praia e a tranquilidade do hotel Vila Marola.
A viagem virou uma espécie de ritual. Na maioria das vezes, quem vem é apenas Ruediger, com seu estilo discreto e reservado. Aos 81 anos, ele mantém a independência. Não gosta depender de ninguém e cultiva hábitos bem próprios. Já íntimo, vê o ambiente se adaptar aos próprios hábitos. Se não era regra antes, a gastronomia com opções à base de lentilha entraram no cardápio do hotel por causa do hóspede cativo.
A rotina do estrangeiro é seguida à risca, entre entradas e saídas do mar durante todo o dia. Ruediger acorda cedo. Toma o café da manhã, exercita-se e parte rumo às salgadas águas. O ritmo é lento. Não há pressa. O que importa é desfrutar cada momento. Ruediger caminha até o galpão e leva os equipamentos até a beira mar. Passados os minutos de preparação, o alemão se perde na imensidão azul-esverdeada — ou verde-azulada.
Ruediger deslizando no mar é cena que impressiona. A aparência e as atividades não evidenciam a idade do alemão. Magro, cabelo grisalho, pele bronzeada, o corpo com músculos e veias que saltam. Era uma quinta-feira ensolarada quando ele recebeu O POVO para retração essa história de intimidade e sintonia com o kitesurfe.
Quando a conversa se inicia, o Ruediger reservado dá lugar ao veterano e carismático aventureiro — caras, bocas, sorrisos, onomatopeias, gestual. Em uma hora de bate-papo, a emoção tomou conta do alemão ao explicar a importância do kitesurfe na vida dele, que foi da doença à leveza ao conectar-se ao mar quente do Ceará.
“O kitesurfe foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida (nos últimos dez anos). Eu me sinto vivo. É um lugar onde posso relaxar, me esquecer de tudo, das besteiras que políticos falam, das guerras, de tudo o que está acontecendo. Esse lugar, o clima, o kite, tudo me faz desligar e não pensar em nada. Só me divertir”.
Em dez anos frequentando o mesmo hotel, Ruediger virou espécie de xodó para funcionários e hóspedes. São hoje laços firmes de amizade com os proprietários do empreendimento, o casal de lituanos Sigita Pipiriene e Arunas Pipiras. Hoje, não é o dinheiro que paga a estadia do kitesurfista da terceira da idade — candidato a praticante mais velho do mundo da modalidade. O preço é um só, que vale mais que euros, reais, marcos ou litas.
DAS DORES NO INVERNO ALEMÃO AO REFÚGIO CALOROSO DO CEARÁ
O frio de Ravensburg, ao sul da Alemanha, é barreira intransponível para Ruediger Ran seguir trilhando paixão pela prática esportiva. Professor de educação física aposentado, o alemão dedicou a vida ao esporte.
Por Lucas Mota
A carreira dedicada à ginástica olímpica foi abreviada pelas lesões. Problemas nos tornozelos, joelhos, ombros renderam uma série de cirurgias que até repercutem em dor quando a temperatura cai abaixo de 0ºC. E, assim, de atleta, o hoje octogenário passou a professor e treinador.
Na terceira idade, o inverno deixou de ser possibilidade de lazer para ser uma porta para sofrimento de Ruediger. As dores da artrose tornaram as atividades esportivas impraticáveis. Foi como uma punhalada no ímpeto de atleta que o acompanhou durante toda a trajetória do alemão, que já se aventurou em modalidades como o mergulho, o esqui e o snowboard.
Foi o clima que acabou tornando o professor aposentado um prisioneiro do próprio corpo. E daí, cresceram sintomas de depressão. “De cinco coisas que eu fazia, hoje consigo fazer duas. Tem um risco”, admite.
Era início dos anos 2000 — Ruediger já passara dos 60 anos — que o destino lhe ofereceu uma lufada de vida. Em Cabo Verd veio a luz no fim do túnel. E a velhice ganhou novos significados. Era possível, ainda, se divertir.
O primeiro contato com o kitesurfe foi, preservado o clichê, um caso de amor à primeira vista. A partir de então a missão era encontrar lugares onde as condições fossem mais favoráveis não só para a prática do esporte, como confortáveis para o contato externo que mais se encaixasse com a personalidade de Ruediger. Passou por Tarifa, Meca da modalidade na Espanha, mas o crowd, a superlotação, impediu aquele clique do encaixe perfeito. Reservado, discreto, o alemão via o mar de gente como fonte de estresse.
Em 2003, o Ceará entrou na história. O primeiro contato foi com a praia do Cumbuco, no município de Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza. Então, o kitesurfe engatinhava na região e os praticantes no litoral cearense eram raros sortudos. Aprovada a experiência, o ano seguinte era hora do repeteco. O horizonte, porém, já ficava menos visível pela lotação de pipas no mar.
Terceiro ano no Cumbuco e o lugar já era outro. “Tinha uns 500 kites no mar. Gosto de estar sozinho. Não quis mais. Passei a explorar outros lugares”, narra.
Ruediger perambulou. Paracuru, Guajiru, Flecheiras. A praia da Taíba era um amor mais escorregadio, escondido dentro dos 753km, as 83 praias do litoral cearense. Quando o alemão tinha 71 anos, ele se encontrou com este amor tardio e a peregrinação pôde cessar. Para o veterano aventureiro, a Taíba era perfeita.
Boas ondas, bons vento, bom mar, bom público. A conexão foi tanta que a calorosa Taíba virou o refúgio definitivo das dores que gritavam no frio de Ravensburg. Explicar o significado desta descoberta emociona Ruediger.
“São meses de muito frio. Sinto muita dor. A maioria das coisas não é possível de se fazer. Andar é dolorido. Dormir é dolorido. Não dá para praticar esporte. Nenhum. Aqui é quente. O clima é super-adequado. É possível se divertir sem crowd. O kite é a última coisa que eu posso fazer com diversão.”, diz, sob olhos marejados.
Kitesurfe é terapia para Ruediger. No isolamento, o alemão encontra uma forma de energizar o corpo e a mente. Após o deslize no mar, ele volta para o quarto. Deita a cabeça no travesseiro e parte noutra viagem, de volta aos momentos que acabara de viver. “Fico recordando as manobras, do que eu fiz, do que senti”, sorri.
Um lar de verão, um lar de inverno
Quando o período na Taíba se encerra, Ravensburg — agora não tão fria —, recebe o aventureiro de volta. Lá, o alemão pode se encontrar com os dois filhos, na casa dos 50 anos. Na busca pela juventude, ele confessa ter encerrado um casamento longo e se perdido na aventura romântica. Como ele próprio clássica, entregou-se a uma crise de meia idade. A relação durou pouco. Hoje, o octogenário namora alguém numa faixa etária mais próxima à sua: Doris, de 73 anos.
Este amor e a paixão pela Taíba têm lá seus atritos. O isolamento por até quatro meses de um alemão do sul para o distante nordeste brasileiro acaba atingindo a conexão com os filhos e namorada.
“É um probleminha. Eu tenho dois filhos, um de 51, um de 54. Um é médico. Em 1994, eu me aposentei. Eu tive uma crise de meia idade e tive um caso com uma moça de 25. Dois, três anos, acabamos. Agora, aqui é difícil. Eu tenho uma namorada, ela tem 73. Eu passo meses aqui. Ela quer que eu fique mais com ela”.
Quiçá seja a atividade física até os 80 que faz com que o coração mantenha a força para equilibrar amores tão distantes.
LONGEVIDADE NASCIDA DE LENTILHA, EXERCÍCIO E KITE
Ruediger Ran é um exímio adepto do costume saudável. Segue à risca a cartilha. Alimento é só aquilo que vem do “chão”.
Por Lucas Mota
Nada de industrializado passa perto do cardápio do alemão. Para ele, essa disciplina é pré-requisito para chegar aos 81 anos mantendo estilo de vida independente, viajando sozinho, desfrutando do kitesurfe, do sol do Ceará e gozando de saúde de causar inveja aos sedentários de 20 e poucos anos.
A chave está no planejamento de vida que Ruediger traçou para si. Dedicado ao esporte, ele desde cedo acostumou-se a abrir mão de tentações para manter hábitos regrados. Hoje, o rigor segue tão forte quanto o próprio corpo do jovem octogenário.
Na Taíba, além do ritual solo no kitesurfe, o alemão destrincha uma rotina diária de exercícios antes de adentrar o mar. O veterano aventureiro impressiona ao trabalhar a musculatura no puxador montado no restaurante do hotel, à beira mar. O corpo definido não é à toa.
“Gosto do que vem da natureza. Não como nada industrializado. Peixe congelado, com hormônio, tudo que vem com química, não gosto. Quando vou ao mercadinho, compro batata, lentilha, ovo. Busco a alimentação mais saudável”, afirma.
O principal alimento da dieta é a lentilha, presente em praticamente todas as refeições do kitesurfista. A intimidade do alemão com o estafe do hotel fez até com que o legume ganhasse lugar no cardápio do local. Hoje, quem chegar ao restaurante pode solicitar as “lentilhas de Ruediger”, como foram carinhosamente batizadas.
Ruediger sabe, tanto por experiência quanto por instinto, que a alimentação é uma engrenagem central para ele seguir tendo condições de praticar o kite. Na terceira idade, ele colhe os benefícios de uma vida regrada — algo que a maioria dos colegas dele não pode dizer. “Meus amigos de 70, 80 (anos), estão assim (imita alguém mancando). Nos últimos três anos, eu via o meu corpo subir. Agora, eu vejo minha mente subir”, filosofa.
Para ele, manter as atividades e sentir o pleno funcionamento do corpo tem um significado a mais. “Gosto de estar aqui. De manhã, vou até a vila dos pescadores caminhando. Para vocês, que são jovens (aponta para o repórter e a intérprete), é difícil entender a importância do corpo”. “É muito importante estar fazendo essas coisas”, professora.
E se o corpo continuar em pleno funcionamento, o alemão garante que se manterá ativo no kitesurfe por mais anos. Se depender de Ruediger, 81 não é um fim. É um novo ponto de partida para mais centenas de voos.
“Eu venho mais e mais porque eu não sei como será o próximo ano. Eu vejo outros com 81? Não. E eu penso: ‘eu tenho sorte’. Apenas sorte. Eu sou o melhor? Não, não. Isso é sorte! Talvez próximo ano eu esteja acabado. Enquanto for possível para mim, eu estarei aqui”, diz, com a honestidade que lhe é peculiar.
ALEMANHA – BRASIL VIA LITUÂNIA
“Um dia, Ruediger decidiu encontrar uma acomodação mais barata ao lado da Vila Marola”, narra Sigita Pipiriene, proprietária do hotel que hospeda o alemão há dez anos. Naquele então, o dinheiro era obstáculo, mas o Ceará se mantinha como refúgio.
Por Lucas Mota
Em dez verões, o aventureiro octogenário estreitara, ano após ano, a amizade com o casal de lituanos Arunas Pipiras e Sigita Pipiriene. Ruediger era mais que um habitante do hotel, era quase membro da família. Foi aí que os empresários resolveram estender a hospitalidade para o resto da vida do kitesurfista — ou até quando os mares e ventos da Taíba acalentarem o coração dele.
“Nós nos preocupamos com ele todos os dias. Parecia que não deveria ser assim (ele se hospedar em outro local), e convidamos Ruediger para voltar para (Vila) Marola e ficar aqui de graça até quando ele ainda possa praticar o kite”, conta Sigita.
Convicto solitário, Ruediger retrocou: “Por que vocês estão fazendo isso comigo?”. “Eu não estava preparada para a pergunta. Mas é porque nos importamos e amamos Ruediger. Nossa casa parecia vazia sem ele. O dinheiro não poderia ser uma razão para Ruediger não estar conosco. Então, desviamos dessa barreira”, lembra Sigita.
A relação de carinho é tanta que os proprietários do hotel todos os anos são atacados pela ansiedade nos meses de verão europeu. A inquietação só vira calmaria quando a caixa de entrada de e-mails acusa a confirmação da vinda de Ruediger por mais uma estação. Neste ano, o alívio dos lituanos veio em junho.
Sigita explica que não é um simples e-mail de confirmação. É mais uma confirmação de que ele está bem, apto, saudável, pronto para novos voos. “Teremos mais um ano juntos, compartilhando após cada sessão de kite, sentados todos juntos em uma grande mesa no bar. Isso você não pode comprar por dinheiro”.
E lá se vão dez anos de amizade e de estadia no hotel. Entre agosto e novembro, o alemão tem presença assegurada. “Ruediger se tornou um atributo da Vila Marola. Ele é alguém único. Todos os kitesurfistas gostariam de viver tanto tempo e ainda assim poder desfrutar do kitesurfe”.
Diante do estilo de vida saudável de Ruediger, o hotel modificou seu cardápio. No início, as lentilhas, maior exigência da alimentação do alemão, eram preparadas pelos próprios donos do estabelecimento. Hoje, virou luxo comum a todos os visitantes.
“Não pense que ele é um homem fácil!”, brinca Sigita. “A cozinha deve ter lentilhas todas as manhãs. Nós chamamos de ‘lentilhas de Ruediger’. É o começo do dia dele. E um bolo sempre deve estar sobre a mesa. Ruediger disse a todos que se alimentassem de forma saudável se quisessem viver muito tempo”, completa.
A internet é outra exigência do alemão. É o canal para ele se comunicar com os filhos e a namorada Doris, no Velho Continente. Qualquer falha no sinal vai resultar em bronca do octogenário. “Quando vemos ele vindo para a recepção e dizendo ‘merda de internet’, todo mundo se esconde”, ri.